domingo, 2 de maio de 2010

Revista Veja: cada dia mais horripilante. Reportagem "A Farra da Antropologia Oportunista"

Reproduzo, aqui, recente reportagem da revista Veja, deste final de semana (1° de maio), tirada do site: http://brasilacimadetudo.lpchat.com/index.php?option=com_content&task=view&id=8785&Itemid=1 . Isto porque, não tenho a revista e a versão online da matéria está disponível apenas para assinantes da Veja. A matéria se chama "A farra da antropologia oportunista", sendo que o resultado é um verdadeiro show de preconceitos, desinformação, cinismo e má-fé (para não dizer coisas piores!). Em resposta a reportagem, o antropólogo Eduardo Viveiro de Castro, supostamente já se manifestou contra a revista e a matéria que teria literalmente "inventado" uma fala absurda de Viveiros de Castro, afim de justificar o ponto de vista assustador dos jornalistas de Veja sobre as populações indígenas e quilombolas no Brasil. Sendo assim, reproduzo também esta suposta mensagem que Viveiros de Castro já teria deixado, caso não esteja enganado, na parte de comentários destinada aos leitores online da revista. Faltaria confirmar se, realmente, esta fala é dele. De qualquer forma, fica aqui: "Ao Editores da revista Veja: 

Na matéria "A farra da antropologia oportunista" (Veja ano 43 nº 18, de 05/05/2010), seus autores colocam em minha boca a seguinte afirmação: "Não basta dizer que é índio para se transformar em um deles. Só é índio quem nasce, cresce e vive num ambiente cultural original" . Gostaria de saber quando e a quem eu disse isso, uma vez que (1) nunca tive qualquer espécie de contato com os responsáveis pela matéria; (2) não pronunciei em qualquer ocasião, ou publiquei em qualquer veículo, reflexão tão grotesca, no conteúdo como na forma. Na verdade, a frase a mim mentirosamente atribuída contradiz o espírito de todas declarações que já tive ocasião de fazer sobre o tema. Assim sendo, cabe perguntar o que mais existiria de  "montado" ou de simplesmente inventado na matéria. A qual, se me permitem a opinião, achei repugnante. Grato pela atenção,

 Eduardo Viveiros de Castro
Antropólogo - UFRJ"





A Farra da Antropologia Oportunista
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Manoel Marques
LEI DA SELVA
Lula na comemoração da demarcação da Raposa Serra do Sol, que feriu o estado de Roraima
Critérios frouxos para a delimitação de reservas indígenas e quilombos ajudam a engordar as contas de organizações não governamentais e diminuem ainda mais o território destinado aos brasileiros que querem produzir
Por Leonardo Coutinho, Igor Paulin e Júlia de Medeiros (*)
As dimensões continentais do Brasil costumam ser apontadas como um dos alicerces da prosperidade presente e futura do país. As vastidões férteis e inexploradas garantiriam a ampliação do agronegócio e do peso da nação no comércio mundial. Mas essas avaliações nunca levam em conta a parcela do território que não é nem será explorada, porque já foi demarcada para proteção ambiental ou de grupos específicos da população.


Áreas de preservação ecológica, reservas indígenas e supostos antigos quilombos abarcam, hoje, 77,6% da extensão do Brasil. Se a conta incluir também os assentamentos de reforma agrária, as cidades, os portos, as estradas e outras obras de infraestrutura, o total alcança 90,6% do território nacional. Ou seja, as próximas gerações terão de se contentar em ocupar uma porção do tamanho de São Paulo e Minas Gerais. E esse naco poderá ficar ainda menor. O governo pretende criar outras 1 514 reservas e destinar mais 50 000 lotes para a reforma agrária. Juntos, eles consumirão uma área equivalente à de Pernambuco. A maior parte será entregue a índios e comunidades de remanescentes de quilombos. Com a intenção de proteger e preservar a cultura de povos nativos e expiar os pecados da escravatura, a legislação brasileira instaurou um rito sumário no processo de delimitação dessas áreas.
Os motivos, pretensamente nobres, abriram espaço para que surgisse uma verdadeira indústria de demarcação. Pelas leis atuQais, uma comunidade depende apenas de duas coisas para ser considerada indígena ou quilombola: uma declaração de seus integrantes e um laudo antropológico. A maioria desses laudos é elaborada sem nenhum rigor científico e com claro teor ideológico de uma esquerda que ainda insiste em extinguir o capitalismo, imobilizando terras para a produção. Alguns relatórios ressuscitaram povos extintos há mais de 300 anos. Outros encontraram etnias em estados da federação nos quais não há registro histórico de que elas tenham vivido lá. Ou acharam quilombos em regiões que só vieram a abrigar negros depois que a escravatura havia sido abolida. Nesta reportagem, VEJA apresenta casos nos quais antropólogos, ativistas políticos e religiosos se associaram a agentes públicos para montar processos e criar reservas. Parte delas destrói perspectivas econômicas de toda uma região, como ocorreu em Peruíbe, no Litoral Sul de São Paulo. Outras levam as tintas do teatro do absurdo. Exemplo disso é o Parque Nacional do Jaú, no Amazonas, que englobou uma vila criada em 1907 e pôs seus moradores em situação de despejo. A solução para mantê-los lá foi declarar a área um quilombo do qual não há registro histórico. Certas iniciativas são motivadas pela ideia maluca de que o território brasileiro deveria pertencer apenas aos índios, tese refutada pelo Supremo Tribunal Federal. Há, ainda, os que advogam a criação de reservas indígenas como meio de preservar o ambiente. E há também – ou principalmente – aqueles que, a pretexto de proteger este ou aquele aspecto, querem tão somente faturar. "Diante desse quadro, é preciso dar um basta imediato nos processos de demarcação", como já advertiu há quatro anos o antropólogo Mércio Pereira Gomes, ex-presidente da Funai e professor da Universidade Federal Fluminense.
Os laudos antropológicos são encomendados e pagos pela Fundação Nacional do Índio (Funai). Mas muitos dos antropólogos que os elaboram são arregimentados em organizações não governamentais (ONGs) que sobrevivem do sucesso nas demarcações. A quantidade de dinheiro que elas recebem está diretamente relacionada ao número de índios ou quilombolas que alegam defender. Para várias dessas entidades, portanto, criar uma reserva indígena ou um quilombo é uma forma de angariar recursos de outras organizações estrangeiras e mesmo do governo brasileiro. Não é por outro motivo que apenas a causa indígena já tenha arregimentado 242 ONGs. Em dez anos, a União repassou para essas entidades 700 milhões de reais. A terceira maior beneficiária foi o Conselho Indígena de Roraima (CIR). A instituição foi criada por padres católicos de Roraima com o objetivo de promover a demarcação da reserva Raposa Serra do Sol, um escândalo de proporções literalmente amazônicas. Instituída em 2005, ela abrange 7,5% do território do estado e significou a destruição de cidades, de lavouras e um ponto final no desenvolvimento do norte de Roraima – que, no total, passou a ter 46% de sua área constituída por reservas indígenas. Em dez anos, o CIR recebeu nada menos que 88 milhões de reais da União, mais do que a quantia repassada à delegacia da Funai de Roraima no mesmo período. Não é preciso dizer que a organização nem sequer prestou contas de como gastou esse dinheiro.
A ganância e a falta de controle propiciaram o surgimento de uma aberração científica. Antropólogos e indigenistas brasileiros inventaram o conceito de "índios ressurgidos". Eles seriam herdeiros de tribos extintas há 200 ou 300 anos. Os laudos que atestam sua legitimidade não se preocupam em certificar se esses grupos mantêm vínculos históricos ou culturais com suas pretensas raízes. Apresentam somente reivindicações de seus integrantes e argumentos estapafúrdios para justificá-las. A leniência com que a Funai analisa tais processos permitiu que comunidades espalhadas pelo país passassem a se apresentar como tribos desaparecidas. As regiões Nordeste e Norte lideram os pedidos de reconhecimento apresentados à Funai. Em dez anos, a população que se declara indígena triplicou. Em 2000, o Ceará contava com seis povos indígenas. Hoje, tem doze. Na Bahia, catorze populações reivindicam reservas. Na Amazônia, quarenta grupos de ribeirinhos de repente se descobriram índios. Em vários desses grupos, ninguém é capaz de apontar um ancestral indígena nem de citar costumes tribais. VEJA deparou com comunidades usando cocares comprados em lojas de artesanato. Em uma delas, há pessoas que aderiram à macumba, um culto africano, pensando que se tratasse da religião do extinto povo anacé. No Pará, um padre ensina aos ribeirinhos católicos como dançar em honra aos deuses daqueles que seriam seus antepassados.
Casos assim escandalizam até estudiosos benevolentes, que aceitam a tese dos "índios ressurgidos". "Não basta dizer que é índio para se transformar em um deles. Só é índio quem nasce, cresce e vive num ambiente de cultura indígena original", diz o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, do Museu Nacional, no Rio de Janeiro. Declarar-se índio, no entanto, além de fácil, é uma farra. No governo do PT, basta ser reconhecido como índio para ganhar Bolsa Família e cesta básica. O governo gasta 250% mais com a saúde de um índio – verdadeiro ou das Organizações Tabajara – do que com a de um cidadão que (ainda) não decidiu virar índio. O paradoxo é que, em certas regiões, é preciso ser visto como índio para ter acesso a benesses da civilização. As "tribos" têm direito a escolas próprias, o que pode ser considerado um luxo no interior do Norte e do Nordeste, onde milhões de crianças têm de andar quilômetros até a sala de aula mais próxima. "Aqui, só tinha escola até a 8ª série e a duas horas de distância. Depois que a gente se tornou índio, tudo ficou diferente, mais perto", diz Magnólia da Silva, neotupinambá baiana. Isso para não falar da segurança fornecida pela Polícia Federal, que protege as terras de invasões e conflitos agrários. "Essas vantagens fizeram as pessoas assumir artificialmente uma condição étnica, a fim de obter serviços que deveriam ser universais", constata o sociólogo Demétrio Magnoli.
A indústria da demarcação enxergou nas pequenas comunidades negras mais uma maneira de sair do vermelho e ficar no azul. Para se ter uma ideia, em 1995, na localidade de Oriximiná, no Pará, o governo federal reconheceu oficialmente a existência de uma comunidade remanescente de um quilombo – e, assim, concedeu um pedaço de terra aos supostos herdeiros dos supostos escravos que supostamente viviam ali. Desde então, foram instituídas outras 171 áreas semelhantes em diversas regiões. Em boa parte delas, os critérios usados foram tão arbitrários quanto os que permitiram a explosão de reservas indígenas. Também no caso dos remanescentes de quilombolas, a principal prova exigida para a demarcação é a autodeclaração. Como era de esperar, passou a ser mais negócio se dizer negro do que mulato. "Desde que o governo começou a financiar esse tipo de segregação racial, os mestiços que moram perto de quilombos passaram a se declarar negros para não perder dinheiro", diz a presidente do Movimento Pardo-Mestiço Brasileiro, Helderli Alves. Índio que não é índio, negro que não é negro, reservas que abrangem quase 80% do território nacional e podem alcançar uma área ainda maior: o Brasil é mesmo um país único. Para espertinhos e espertalhões.

Os novos canibais

Manoel Marques



A foto acima parece estranha – e é. O baiano José Aílson da Silva é negro e professa o candomblé. Seu cocar é de penas de galinha, como os que se usam no Carnaval. Silva se declarou pataxó, mas os pataxós disseram que era mentira. Reapareceu tupinambá, povo antropófago extinto no século XVII. Ele é irmão do também autodeclarado cacique Babau, que vive em uma área que nunca foi habitada pelos tupinambás. Sua "tribo" é composta de uma maioria de negros e mulatos, mas também tem brancos de cabelos louros. Há seis anos, o grupo invade e saqueia fazendas do sul da Bahia, crimes que levaram Babau à prisão. Seu irmão motorista também esteve na cadeia, por jogar o ônibus sobre agricultores. As contradições e os delitos não impediram a Funai de reconhecê-los como índios legítimos e de oferecer-lhes uma reserva gigantesca, que englobaria até a histórica Olivença, um das primeiras vilas do país.

Teatrinho na praia

Manoel Marques



Os boraris viviam em Alter do Chão, a praia mais badalada do Pará. Com pouco mais 200 pessoas, a etnia assimilou a cultura dos brancos de tal forma que desapareceu no século XVIII. Em 2005, Florêncio Vaz, frade fundador do Grupo Consciência Indígena, persuadiu 47 famílias caboclas a proclamar sua ascendência borari. Frei Florêncio ensinou-lhes costumes e coreografias indígenas. O "cacique" Odair José, de28 anos, reclamou do fato de VEJA tê-lo visitado sem anúncio prévio. "A gente se prepara para receber a imprensa", disse. Seu vizinho Graciano Souza Filho afirma que "ele se pinta e se fantasia de índio para enganar os visitantes". Basílio dos Santos, tio do "cacique", corrobora essa versão: "Não tem índio aqui. Os bisavôs do Odair nasceram em Belém".

Macumbeiros de cocar

Leonardo Coutinho


Os cearenses de São Gonçalo do Amarante vivem um tormento. Sede do Porto de Pecém, o município esperaabrigar uma refinaria, uma siderúrgica e um complexo industrial. Um padre, no entanto, convenceu seus fiéis de que esses investimentos os expulsarão do local. Sua única saída para ficar lá seria declararem-se indígenas. "Querem nos tirar terras que nossos pais e avós compraram com muito suor", reverbera o agente de saúde Francisco Moraes. Eles, então, compraram cocares, maracas e passaram a se pintar. "A gente sempre foi índio, só não sabia", diz Moraes, que agora se apresenta como "Cacique Júnior" e cultiva supostos hábitos dos índios anacés, extintos há 200 anos. "Faço macumba e a dança de São Gonçalo." A questão é que a origem da macumba é africana e a da dança, portuguesa.

Made in Paraguai

Leonardo Coutinho



Há dezoito anos, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) importou índios paraguaios e argentinos para o Morro dos Cavalos, em Santa Catarina. Hoje, vivem lá dezessete famílias. A maioria dos imigrantes só se expressa em espanhol, mas todos foram orientados a se declarar brasileiros. "A Funai e o Cimi falam para a gente dizer que é carijó", diz o guarani Milton Moreira, de 49 anos. Paraguaio, ele chegou a Santa Catarina quando tinha 6 anos, mas foi sua presença no local que embasou o pedido de criação da reserva. Curiosamente, Moreira se opõe à demarcação. "Cresci aqui porque meu pai não tinha mais onde me criar. Se esses antropólogos querem botar índio em qualquer lugar, por que não põem a gente para morar no apartamento deles?", pergunta Moreira.

Índio bom é índio pobre

Claudio Gatti


Em 2000, cinquenta famílias de guaranis se mudaram para uma praia em Peruíbe, no Litoral Sul de São Paulo. A terra que eles ocuparam é infértil, mas ainda assim poderiam ter feito um ótimo negócio. O empresário Eike Batista queria construir um porto no local e ofereceu aos índios uma fazenda produtiva, com infraestrutura, dois rios, um pesque-pague e até caça. Mais: daria 1 milhão de reais a cada família. A tribo tirou a sorte grande – ou quase. A Funai barrou o acordo em 2007. Alegou que os sete anos de ocupação irregular da área converteram os índios em moradores tradicionais do local. A chefe Lílian Gomes (em pé, ao fundo) lamentou. Moradora da região desde 2002, ela é casada com um caminhoneiro (branco), tem carro, TV, computador, faz compras no supermercado e não conseguiu impedir a Funai de enterrar a melhor oportunidade de ascensão social que seus liderados tiveram.
 

Problema dos brancos




Trezentos pequenos agricultores das gaúchas Erechim, Erebango e Getúlio Vargas estão prestes a perder suas terras. Em 2006, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) transferiu para a região um grupo de 63 guaranis de outros locais do Rio Grande do Sul. Os índios ergueram uma favela em volta de fazendas constituídas por italianos, alemães e poloneses há mais de 150 anos. Estão vivendo em condições subumanas. "A gente veio para cá porque o Cimi prometeu mais terras, mas estamos na miséria", diz um dos líderes guarani Severino Moreira (o primeiro à esquerda). Seu sofrimento é passageiro. A Funai declarou que a terra é uma área tradicional dos índios, sugeriu a criação de uma reserva no local e a expulsão dos colonos. São esses últimos, agora, que terão problemas.
 
 

Os "carambolas"

Manoel Marques



Nunca se soube da existência de quilombos no Amazonas. Mas há quatro anos apareceu um em Novo Airão, a noroeste de Manaus. Lá, 22 famílias se declararam herdeiras de escravos fugidos. Até então, elas contavam outra história: descenderiam de sergipanos que, há 100 anos, teriam imigrado para trabalhar na coleta do látex. Em 1980, a comunidade entrou em um limbo jurídico. Naquele ano, o governo incluiu sua vila no Parque Nacional do Jaú. As famílias passaram a viver ilegalmente na área. O Ministério do Desenvolvimento Agrário resolveu o problema convertendo-os em quilombolas – ou "carambolas", como eles se autodenominam. "A gente virou ‘carambola’ para não perder a terra", diz Edneu Mendes.

Não basta ser negro

Fotos Liane Neves





O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) dividiu uma comunidade negra que vive na região central do Rio Grande do Sul desde o início do século XIX. O Incra demarcou na área um quilombo chamado São Miguel. Parte dos negros se opôs ao processo. José Adriano Carvalho explica por quê: "O Incra veio com papo de regularizar minhas terras, mas, quando mostrei que a documentação estava em ordem, eles disseram que a intenção era tirar os brancos daqui", afirma. Carvalho se recusou a declarar que era descendente de quilombolas e, por isso, pode ser expulso da terra onde nasceu, há 68 anos.
 

sábado, 13 de março de 2010

Só para fumantes…

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Sem palavras para descrever o quanto gostei do primeiro conto deste livro, que dá o seu título: “Só para fumantes”, editado pela Cosac Naify. Para os apreciadores de um cigarrinho, leitura obrigatória. Nem vou gastar tempo, tentando falar alguma coisa sobre o conto do escritor peruano Julio Ramón Ribeiro, vou jogar direto um longo teco que já diz muito; ou melhor…tudo:

 

“Era o objeto em si que me subjugava, o cigarro, tanto sua forma como seu conteúdo, sua manipulação, sua inserção na rede meus gestos, ocupações e hábitos cotidianos [...] Essa reflexão levou-me a considerar que o cigarro, além de ser uma droga, era para mim um hábito e um ritual. Como todo hábito, tinha se somado à minha natureza até fazer parte dela, de modo que tirá-lo de mim equivalia a uma mutilação; e como todo ritual, estava submetido à observação de um rigoroso protocolo, sancionado pela execução de atos precisos e do emprego de objetos de cultos insubstituíveis. Podia assim chegar à conclusão de que fumar era um vício que me fornecia, à falta de prazer sensorial, um sentimento de calma e bem-estar profundo, fruto da nicotina que o tabaco continha e que se manifestava no meu comportamento social através de atos ritualísticos. Tudo isso está muito bem, pensei, era coerente e até bonito, mas não me satisfazia, porque não explicava por que fumava quando estava sozinho e não tinha nada para pensar, nem dizer, nem escrever, nem ocultar, nem aparentar, nem representar. A tirania do cigarro devia ter, portanto, causas mais profundas, provavelmente subconscientes. Longe de mim, por outro lado, me amparar em Freud, menos por ele que por seus exegetas fanáticos e medíocres que viam falos, ânus e Édipos por toda a parte. Segundo alguns de seus divulgadores, o vício do cigarro explicava-se por uma regressão infantil à procura do bico do seio materno ou por uma sublimação cultural do desejo de sucção do pênis. Lendo essas idiotices compreendi porque Nabokov – exagerando, é claro – referia-se a Freud como o ‘charlatão de Viena.

Não me restou outro remédio senão inventar minha própria teoria. Teoria filosófica e absurda, que menciono aqui por simples curiosidade. Imaginei que, segundo Empédocles, os quatro elementos primordiais da natureza eram o ar, a água, a terra e o fogo. Todos eles vinculado à origem da vida e à sobrevivência da espécie. Com o ar estamos em contato permanente, já que o respiramos, o expelimos, o condicionamos. Com a água também, já que a bebemos, nos lavamos com ela e com ela temos prazer em exercícios natatórios ou submarinos. Igualmente com a terra, pois caminhamos sobre ela, a cultivamos, a modelamos com as nossas mãos. Mas com o fogo não podemos ter relação direta. O fogo é o único dos quatro elementos de Empédocles que nos afasta, pois sua proximidade ou contato nos faz mal. O único jeito de nos vincularmos a ele é através de um mediador. E esse mediador é o cigarro. O cigarro permite que nos comuniquemos com o fogo sem sermos consumidos por ele. O fogo está num extremos do cigarro e nós no oposto. E a prova que esse contato é estreito reside em que o cigarro arde, mas é a nossa boca que expele a fumaça. Por meio dessa invenção, completamos nossa necessidade ancestral de nos religarmos com os quatro elementos originais da vida. Essa relação foi sacralizada pelos povos primitivos mediante cultos religiosos diversos, terrestres ou aquáticos e, no que diz respeito ao fogo, mediante cultos solares. Adorou-se o Sol porque encarnava o fogo e seus atributos, a luz e o calor. Secularizados e descrentes, já não podemos mais render homenagem ao fogo a não ser através do cigarro. O cigarro seria assim um sucedâneo da antiga divindade solar, e fumar, uma forma de perpetuar o seu culto. Uma religião, em suma, por mais banal que possa parecer. Daí que renunciar ao cigarro seja um ato grave e dilacerante, como uma abjuração” (pp.50-53).

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Meet the Natives

meetthenatives460Não é sempre, mas noites de insônia podem ser compensadoras; e numa dessas madrugadas bem longas, lá pelas seis da matina, já com os pássaros irritantemente cantando, um programa da National Geographic me chamou a atenção: Meet the Natives. Traduzido aqui no Brasil com a infeliz expressão "Uma Tribo na Cidade Grande". Cinco nativos de um lugar que não consegui descobrir ainda, talvez alguma ilha do Pacífico (sul?), são enviados para a Inglaterra a fim de estudar e entender os estranhos hábitos dessa gente britânica, branca e ocidental. Ou seja, trocando em miúdos, a proposta do programa flerta com a inversão de posições histórica e politicamente consolidadas: a do antropólogo e a dos nativos ou indígenas.  Só que agora, supostamente, são os nativos que,  com câmeras em mãos, vestem a pele do antropólogo e aporrinham os ingleses com uma série de perguntas.

Até que o programa tem seus momentos, conseguindo vez ou outra, através do olhar do olhar estrangeiro, causar alguma espécie de estranhamento com os costumes da vida social inglesa e mesmo "ocidental" (fico com esse, na falta de termo melhor). Contudo, no conjunto, não consegue fugir aos clichês etnocêntricos e aos estereótipos fáceis, porém eficazes em mostrar estes argonautas de uma maneira infantilizada e mesmo imbecilizada, apelando preferencialmente ao cômico para dar conta das situações de "contato". Ou melhor, apela ao riso indulgente do espectador como uma estratégia para manter estes cinco personagens sempre na esfera do "incivilizado" e do "primitivo".

Talvez, o ponto alto do episódio, seja uma passagem em que um dos chefes locais explica algumas das "tarefas" que caberiam aos viajantes realizar na Inglaterra. Mas a principal, seria a de procurar o seu principal deus que, fazia muito tempo, havia viajado para aquele país. Na Inglaterra ganhou forma humana e, desde então, passou a ali viver, ensinando aos ingleses os valores e os costumes de seu povo. O interesse dos nativos em encontrar seu deus não poderia ser mais legítimo: eles queriam saber quando este deus voltaria para a sua terra natal, onde se transformaria novamente  em "espírito", ou alguma forma equivalente, e realizaria as profecias de sorte, fortuna, prosperidade e bonança. Eis que chega o mais interessante. Entre orgulhoso e confiante de que a tarefa será realizada, o chefe mostra uma foto do deus em sua forma humana, protagonizando um momento digno de  entrar nos trabalhos do antropólogo norte-americano Marshall Sahlins: a foto exposta se trata de uma imagem do príncipe Phillip da Inglaterra, ainda jovem, em pose de caça e em trajes de Indiana Jones, com uma espingarda na mão. Impossível não ficar curioso em descobrir que tortuosos caminhos levaram estes nativos a realizarem este tipo de interpretação de sua cosmologia, associando seus deus ausente com o príncipe Philip.


No entanto, não preciso dizer que o programa não oferece uma pista qualquer, não fazendo qualquer menção se aquela região foi colônia inglesa, ou não; ou, menos provável, se por alguma razão o príncipe aportou por aquelas bandas. Tão pouco se em algum momento, ao menos, o ingleses mantiveram contatos permanentes com eles. Tudo se passa como se aqueles personagens tivessem encontrado do nada aquela fotografia e, então, resolvido fantasiar em torno daquela imagem as mais fantásticas coisas, sem qualquer lógica ou sentido aparente. E, por consequência, como se este grupo não passasse de um rudimento de sociedade que, graças à sua "primitividade", não fosse capaz de agir a não ser de uma maneira quase patética, a ponto de acreditarem que o príncipe Philip se trata de um suposto deus ancestral. Não muito tempo atrás, embora não tenha deixado de existir, programas como esse apelavam quase invariavelmente aos aspectos que poderiam ser interpretados como bizarros e repulsivos ao observador, numa clara tentativa de transformar diferenças em sinônimo de déficit de humanidade. Hoje, já não é preciso: basta uma boa risada.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Eu, meu cigarro e a lei (parte I)


Eu, meu cigarro e a lei. Eis uma relação cada vez mais complicada. Afinal, faz algumas semanas começamos a viver sob as regras da novíssima Lei-Antifumo (ou anti-fumante? Ainda estou em dúvida!). O que equivale a muita polêmica e um bocado de gente chata que tende a confundir leis de controle e regulamentação do uso do tabaco com o direito de achar que o fumante deve ser extinto e desrespeitado: em geral, por aquelas pessoas que são acometidas por estranhas pulsões nervosas, quase sempre acompanhadas de caretas, toda vez que detectam um fumante no seu raio de visão. Contudo, as deixemos de lado. Não é sobre estas pessoas que quero falar. Mas sim, sobre a forma como o cigarro vem se transformando numa espécie de "cavalo-de-santo" ideológico através do qual se é capaz de justificar toda sorte de arbitrariedades, ingerências e sanções. Difícil dizer onde tudo isso vai parar, mas já conseguimos ter uma boa ideia.


Bizarrices, neste sentido, é o que não falta. Basta ter um pouco de paciência e estômago para acompanhar os noticiários, e ver a que ponto estamos chegando. Algumas reportagens são verdadeiras pérolas. Menciono apenas algumas:
"O Vegas, uma das casas noturnas mais frequentadas do 'Baixa Augusta', já se adequou à lei. Na entrada os fumantes são identificados com pulseiras. 'Durante a noite, liberamos grupos de 15 pessoas para fumar lá fora', conta Facundo Guerra, proprietário do club" (Casas Noturnas Criam Pulseiras Para Fumantes e Reforçam Segurança, Folha Online, 06/08/09). No entanto, não bastasse as simpáticas pulseirinhas sinalizadoras, a pessoa tem o seu cigarrinho confiscado temporariamente, sob pena de não entrar no estabelecimento. Continua a mesma reportagem: "na entrada, a revista recolhe os cigarros e os devolve somente na saída". De fato, é preciso perguntar para o infeliz dono da casa noturna em que parte da lei, a qual ele  se "adequou", está prescrito o uso de pulseiras e o confisco dos cigarros.


Já um outro bar, resolveu usar de um "bom humor" muito estranho para alertar os fumantes sobre a nova lei: "no O'Malley's [...] os seguranças estarão munidos de pistolas d'água 'para apagar, subitamente, o fumígeno ofensivo', como conta o proprietário do pub, Ali Visserman". Mas diz o dono, na maior cara de pau, "a intenção é jogar água somente no cigarro, e não no rosto das pessoas" (Polícia e Pistolas D'Água São Armas dos Bares Para Conter Fumantes, Folha Online, 06/08/2009). Pulseiras, revistas e atiradores de elite munidos de snipers d'água, estes são alguns dos absurdos e das paranóias que estão pautando nossa vida. O pior é que práticas como essas começam a soar normal, tolerável e mesmo desejável. Seria preciso uma paciência e um tempo que não disponho agora para lidar com os significados sociais e políticos destas práticas. Contudo, não deixa de ser assustador perceber como certos valores, quase sempre legitimados por argumentos que remetem a noções de "boa saúde" e assepsia social, estão interferindo e regulando nossa sociabilidade cotidiana. Lógico, isso não é de hoje. Mas o cigarro vem sendo a bola da vez. 


PS: A charge utilizada neste post foi tirada do blog do cartunista Rico, onde tem muita coisa legal: http://ricostudio.blogspot.com/

sábado, 19 de setembro de 2009

Lóki: loucura e consagração de Arnaldo Baptista

Por uma destas felizes coincidências que calham acontecer, o Canal Brasil liberou o sinal e, finalmente, pude assistir ao documentário Lóki. Nele se conta a vida e a obra de Arnaldo Dias Baptista, figura das mais importantes na história do rock nacional que, em meados da década de 1960, ao lado de seu irmão Sérgio Dias e Rita Lee, ajudou a criar a banda "Os Mutantes". Ao lado d'Os Mutantes, Arnaldo foi um divisor de águas em nossa história cultural e musical recente, tendo demonstrado uma rara sensibilidade criativa para fundir a MPB (seja lá o que significa isso hoje!) com o conjunto de referências musicais que começavam a chegar no Brasil: especialmente do rock britânico e norte-americano. Sem dúvida, Os Mutantes foram os que melhores souberam processar essas referências, ainda que não tenham sido os únicos. Não bastasse isso, Arnaldo teve uma das trajetórias mais intrigantes e bizarras de nossa história musical; cheia de altos e baixos; drogas e psicoses e cujo desfecho trágico foi uma suposta tentativa de suicídio, se jogando pela janela do terceiro andar de um hospital em São Paulo. Isto, em 1982, quando tinha apenas 33 anos. Por muita sorte não morreu, embora tenha ficado com sérias sequelas, perceptíveis ainda hoje. E, talvez por isso mesmo, ao invés de virar uma lenda ou um mito norteador do rock brasileiro, Arnaldo foi lentamente se materializando em uma de suas músicas do albúm Lóki (1974), sintomaticamente chamada "Será que eu vou virar bolor": "o que é isso meu amor/será que eu vou morrer de dor?/Será que eu vou virar bolor?".

Nada mais profético. Arnaldo foi gradativamente embolorando, guardado em algum armário que as pessoas deixaram de abrir por um bom bocado de tempo. Lógico, o acidente não foi o único acontecimento que contribuiu para isso. Ele apenas foi o fecho dramático de um processo de loucura que, regado a muito LSD, foi se desencadeando em meio às turbulências e tensões que levaria a duas importantes rupturas: a primeira, com Rita Lee, sua primeira namorada e esposa e , depois, com Os Mutantes. A sequência foi uma série de álbuns solos - mais aqueles junto ao Patrulha do Espaço, nos quais Arnaldo passou a compor músicas cada vez mais insanas e confessionais. A voz grave e irreverente dos tempos de "Posso perder minha mulher, minha mãe, desde que eu tenha meu Rock'n Roll, vai cedendo espaço para uma voz suave e rouca, embalado por um piano quase sempre melancólico. Com Os Mutantes no passado, Sérgio Dias longe da cena musical brasileira e Rita Lee consolidando sua carreira solo, a carreira solo de Arnaldo não duraria muito. Voltou a ser notícia com o acidente para, logo em seguida, sumir novamente, recluso num sítio em Juiz de Fora, onde conseguiu se recuperar de maneira notável, em muito, graças à pintura. E, talvez, continuaria sumido não fosse o (re)descobrimento dos Mutantes por um público influente internacional (entre eles, David Byrne e Curt Cobain) e, agora, por este documentário, o qual busca recuperar a (justa) importância de Arnaldo dentro dos Mutantes, mas também na música e no rock brasileiros em seu conjunto. Uma importância que, inclusive, o documentário busca a todo instante ressaltar através de entrevistas com músicos e experts, nas quais comparam a "revolução estética" empreendida pelos Mutantes com a dos Beatles. Na verdade, isso pouco importa. Suspeito, mesmo, que a comparação é equivocada, uma vez que cada qual atuaram em contextos muito particulares, mobilizando recursos e tradições musicais diferentes.

Insano demais para permanecer em evidência em seu tempo, Arnaldo e sua loucura retornam agora como os elementos que dão força e evidência a sua obra, como justamente aquilo que o transforma, paradoxalmente, no músico "a frente de seu tempo"; o gênio "incompreeendido" e "embolorado" que, injustamente, caiu em desgraça. Certamente será matéria farta na mão de críticos, selos independentes (ou não) e paulistanos descolados, frequentadores de espaços Itaú. Mais uma vez retorna o velho tema do gênio incompreendido e que, infelizmente, continuará a ser incompreendido por ser tratado como alguém que produziu algo que não foi entendido em sua época.

domingo, 16 de agosto de 2009

Pois bem! Todo começo é complicado. Há tempos venho namorando a idéia de criar Um Blog. Uma idéia que, por várias vezes e razões (as quais não vale a pena enumerar!) protelei. Mas enfim, hoje resolvi dar forma ao negócio que, talvez, quatro ou cinco bons amigos lerão e serão (espero!) indulgentes com este iniciante. Seja como for, o importante é dizer que levo adiante a iniciativa, em grande medida, graças ao incentivo de meu amigo Chris (ele próprio tem seu Blog – Flushbacks). Acompanhando seu blog, mas também o de muitos outros amigos; suas histórias e seus transes terapêuticos e psicóticos via net, acabei me convencendo que poderia ser legal: afinal, a vontade de escrever sempre é grande e caraminholas na cabeça é o que não falta...Veremos o que vai dar isso tudo