sábado, 13 de março de 2010

Só para fumantes…

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Sem palavras para descrever o quanto gostei do primeiro conto deste livro, que dá o seu título: “Só para fumantes”, editado pela Cosac Naify. Para os apreciadores de um cigarrinho, leitura obrigatória. Nem vou gastar tempo, tentando falar alguma coisa sobre o conto do escritor peruano Julio Ramón Ribeiro, vou jogar direto um longo teco que já diz muito; ou melhor…tudo:

 

“Era o objeto em si que me subjugava, o cigarro, tanto sua forma como seu conteúdo, sua manipulação, sua inserção na rede meus gestos, ocupações e hábitos cotidianos [...] Essa reflexão levou-me a considerar que o cigarro, além de ser uma droga, era para mim um hábito e um ritual. Como todo hábito, tinha se somado à minha natureza até fazer parte dela, de modo que tirá-lo de mim equivalia a uma mutilação; e como todo ritual, estava submetido à observação de um rigoroso protocolo, sancionado pela execução de atos precisos e do emprego de objetos de cultos insubstituíveis. Podia assim chegar à conclusão de que fumar era um vício que me fornecia, à falta de prazer sensorial, um sentimento de calma e bem-estar profundo, fruto da nicotina que o tabaco continha e que se manifestava no meu comportamento social através de atos ritualísticos. Tudo isso está muito bem, pensei, era coerente e até bonito, mas não me satisfazia, porque não explicava por que fumava quando estava sozinho e não tinha nada para pensar, nem dizer, nem escrever, nem ocultar, nem aparentar, nem representar. A tirania do cigarro devia ter, portanto, causas mais profundas, provavelmente subconscientes. Longe de mim, por outro lado, me amparar em Freud, menos por ele que por seus exegetas fanáticos e medíocres que viam falos, ânus e Édipos por toda a parte. Segundo alguns de seus divulgadores, o vício do cigarro explicava-se por uma regressão infantil à procura do bico do seio materno ou por uma sublimação cultural do desejo de sucção do pênis. Lendo essas idiotices compreendi porque Nabokov – exagerando, é claro – referia-se a Freud como o ‘charlatão de Viena.

Não me restou outro remédio senão inventar minha própria teoria. Teoria filosófica e absurda, que menciono aqui por simples curiosidade. Imaginei que, segundo Empédocles, os quatro elementos primordiais da natureza eram o ar, a água, a terra e o fogo. Todos eles vinculado à origem da vida e à sobrevivência da espécie. Com o ar estamos em contato permanente, já que o respiramos, o expelimos, o condicionamos. Com a água também, já que a bebemos, nos lavamos com ela e com ela temos prazer em exercícios natatórios ou submarinos. Igualmente com a terra, pois caminhamos sobre ela, a cultivamos, a modelamos com as nossas mãos. Mas com o fogo não podemos ter relação direta. O fogo é o único dos quatro elementos de Empédocles que nos afasta, pois sua proximidade ou contato nos faz mal. O único jeito de nos vincularmos a ele é através de um mediador. E esse mediador é o cigarro. O cigarro permite que nos comuniquemos com o fogo sem sermos consumidos por ele. O fogo está num extremos do cigarro e nós no oposto. E a prova que esse contato é estreito reside em que o cigarro arde, mas é a nossa boca que expele a fumaça. Por meio dessa invenção, completamos nossa necessidade ancestral de nos religarmos com os quatro elementos originais da vida. Essa relação foi sacralizada pelos povos primitivos mediante cultos religiosos diversos, terrestres ou aquáticos e, no que diz respeito ao fogo, mediante cultos solares. Adorou-se o Sol porque encarnava o fogo e seus atributos, a luz e o calor. Secularizados e descrentes, já não podemos mais render homenagem ao fogo a não ser através do cigarro. O cigarro seria assim um sucedâneo da antiga divindade solar, e fumar, uma forma de perpetuar o seu culto. Uma religião, em suma, por mais banal que possa parecer. Daí que renunciar ao cigarro seja um ato grave e dilacerante, como uma abjuração” (pp.50-53).