sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Meet the Natives

meetthenatives460Não é sempre, mas noites de insônia podem ser compensadoras; e numa dessas madrugadas bem longas, lá pelas seis da matina, já com os pássaros irritantemente cantando, um programa da National Geographic me chamou a atenção: Meet the Natives. Traduzido aqui no Brasil com a infeliz expressão "Uma Tribo na Cidade Grande". Cinco nativos de um lugar que não consegui descobrir ainda, talvez alguma ilha do Pacífico (sul?), são enviados para a Inglaterra a fim de estudar e entender os estranhos hábitos dessa gente britânica, branca e ocidental. Ou seja, trocando em miúdos, a proposta do programa flerta com a inversão de posições histórica e politicamente consolidadas: a do antropólogo e a dos nativos ou indígenas.  Só que agora, supostamente, são os nativos que,  com câmeras em mãos, vestem a pele do antropólogo e aporrinham os ingleses com uma série de perguntas.

Até que o programa tem seus momentos, conseguindo vez ou outra, através do olhar do olhar estrangeiro, causar alguma espécie de estranhamento com os costumes da vida social inglesa e mesmo "ocidental" (fico com esse, na falta de termo melhor). Contudo, no conjunto, não consegue fugir aos clichês etnocêntricos e aos estereótipos fáceis, porém eficazes em mostrar estes argonautas de uma maneira infantilizada e mesmo imbecilizada, apelando preferencialmente ao cômico para dar conta das situações de "contato". Ou melhor, apela ao riso indulgente do espectador como uma estratégia para manter estes cinco personagens sempre na esfera do "incivilizado" e do "primitivo".

Talvez, o ponto alto do episódio, seja uma passagem em que um dos chefes locais explica algumas das "tarefas" que caberiam aos viajantes realizar na Inglaterra. Mas a principal, seria a de procurar o seu principal deus que, fazia muito tempo, havia viajado para aquele país. Na Inglaterra ganhou forma humana e, desde então, passou a ali viver, ensinando aos ingleses os valores e os costumes de seu povo. O interesse dos nativos em encontrar seu deus não poderia ser mais legítimo: eles queriam saber quando este deus voltaria para a sua terra natal, onde se transformaria novamente  em "espírito", ou alguma forma equivalente, e realizaria as profecias de sorte, fortuna, prosperidade e bonança. Eis que chega o mais interessante. Entre orgulhoso e confiante de que a tarefa será realizada, o chefe mostra uma foto do deus em sua forma humana, protagonizando um momento digno de  entrar nos trabalhos do antropólogo norte-americano Marshall Sahlins: a foto exposta se trata de uma imagem do príncipe Phillip da Inglaterra, ainda jovem, em pose de caça e em trajes de Indiana Jones, com uma espingarda na mão. Impossível não ficar curioso em descobrir que tortuosos caminhos levaram estes nativos a realizarem este tipo de interpretação de sua cosmologia, associando seus deus ausente com o príncipe Philip.


No entanto, não preciso dizer que o programa não oferece uma pista qualquer, não fazendo qualquer menção se aquela região foi colônia inglesa, ou não; ou, menos provável, se por alguma razão o príncipe aportou por aquelas bandas. Tão pouco se em algum momento, ao menos, o ingleses mantiveram contatos permanentes com eles. Tudo se passa como se aqueles personagens tivessem encontrado do nada aquela fotografia e, então, resolvido fantasiar em torno daquela imagem as mais fantásticas coisas, sem qualquer lógica ou sentido aparente. E, por consequência, como se este grupo não passasse de um rudimento de sociedade que, graças à sua "primitividade", não fosse capaz de agir a não ser de uma maneira quase patética, a ponto de acreditarem que o príncipe Philip se trata de um suposto deus ancestral. Não muito tempo atrás, embora não tenha deixado de existir, programas como esse apelavam quase invariavelmente aos aspectos que poderiam ser interpretados como bizarros e repulsivos ao observador, numa clara tentativa de transformar diferenças em sinônimo de déficit de humanidade. Hoje, já não é preciso: basta uma boa risada.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Eu, meu cigarro e a lei (parte I)


Eu, meu cigarro e a lei. Eis uma relação cada vez mais complicada. Afinal, faz algumas semanas começamos a viver sob as regras da novíssima Lei-Antifumo (ou anti-fumante? Ainda estou em dúvida!). O que equivale a muita polêmica e um bocado de gente chata que tende a confundir leis de controle e regulamentação do uso do tabaco com o direito de achar que o fumante deve ser extinto e desrespeitado: em geral, por aquelas pessoas que são acometidas por estranhas pulsões nervosas, quase sempre acompanhadas de caretas, toda vez que detectam um fumante no seu raio de visão. Contudo, as deixemos de lado. Não é sobre estas pessoas que quero falar. Mas sim, sobre a forma como o cigarro vem se transformando numa espécie de "cavalo-de-santo" ideológico através do qual se é capaz de justificar toda sorte de arbitrariedades, ingerências e sanções. Difícil dizer onde tudo isso vai parar, mas já conseguimos ter uma boa ideia.


Bizarrices, neste sentido, é o que não falta. Basta ter um pouco de paciência e estômago para acompanhar os noticiários, e ver a que ponto estamos chegando. Algumas reportagens são verdadeiras pérolas. Menciono apenas algumas:
"O Vegas, uma das casas noturnas mais frequentadas do 'Baixa Augusta', já se adequou à lei. Na entrada os fumantes são identificados com pulseiras. 'Durante a noite, liberamos grupos de 15 pessoas para fumar lá fora', conta Facundo Guerra, proprietário do club" (Casas Noturnas Criam Pulseiras Para Fumantes e Reforçam Segurança, Folha Online, 06/08/09). No entanto, não bastasse as simpáticas pulseirinhas sinalizadoras, a pessoa tem o seu cigarrinho confiscado temporariamente, sob pena de não entrar no estabelecimento. Continua a mesma reportagem: "na entrada, a revista recolhe os cigarros e os devolve somente na saída". De fato, é preciso perguntar para o infeliz dono da casa noturna em que parte da lei, a qual ele  se "adequou", está prescrito o uso de pulseiras e o confisco dos cigarros.


Já um outro bar, resolveu usar de um "bom humor" muito estranho para alertar os fumantes sobre a nova lei: "no O'Malley's [...] os seguranças estarão munidos de pistolas d'água 'para apagar, subitamente, o fumígeno ofensivo', como conta o proprietário do pub, Ali Visserman". Mas diz o dono, na maior cara de pau, "a intenção é jogar água somente no cigarro, e não no rosto das pessoas" (Polícia e Pistolas D'Água São Armas dos Bares Para Conter Fumantes, Folha Online, 06/08/2009). Pulseiras, revistas e atiradores de elite munidos de snipers d'água, estes são alguns dos absurdos e das paranóias que estão pautando nossa vida. O pior é que práticas como essas começam a soar normal, tolerável e mesmo desejável. Seria preciso uma paciência e um tempo que não disponho agora para lidar com os significados sociais e políticos destas práticas. Contudo, não deixa de ser assustador perceber como certos valores, quase sempre legitimados por argumentos que remetem a noções de "boa saúde" e assepsia social, estão interferindo e regulando nossa sociabilidade cotidiana. Lógico, isso não é de hoje. Mas o cigarro vem sendo a bola da vez. 


PS: A charge utilizada neste post foi tirada do blog do cartunista Rico, onde tem muita coisa legal: http://ricostudio.blogspot.com/